sábado, 4 de abril de 2009

Nascido Escravo - Erasmo, Lutero e o "Livre Arbítrio"


“Martinho Lutero, ao venerável D. Erasmo de Rotterdam, com os votos de Graça e Paz em Cristo”. É assim que Lutero introduz a sua obra De Servo Arbítrio, A Escravidão da Vontade, resposta à famosa Diatribe sobre o Livre Arbítrio, que Erasmo publicou em 1524.

Desidério Erasmo (c. 1466-1536) e Martinho Lutero (1483-1546) permanecem como dois nomes precursores do espírito moderno, e entre eles há algumas semelhanças. Esses dois gigantes intelectuais europeus protagonizaram no contexto explosivo, destinado a dissolver a unidade do mundo medieval. Havendo passado pela Ordem agostiniana, ambos vieram a rejeitar métodos hermenêuticos da Igreja Romana, bem como muitas de suas superstições e crendices. Ambos ofereceram grande contribuição à disseminação do texto bíblico em sua época. Detentores de enorme capacidade para o debate acadêmico, erudito, e partilhando de talento literário, ambos escreveram acerca do “livre arbítrio”, embora com uma diferença diametral: Erasmo, o humanista, defendendo; e Lutero, o reformador, condenando. Isto marcou uma ruptura definitiva entre os dois homens, que, anteriormente, ofereciam-se mútuo encorajamento. Desde o debate de Leipzig (1519), os caminhos de ambos vinham conduzindo a rumos diferentes.

Publicado inicialmente em 1525, A Escravidão da Vontade1 é um primor de composição polêmica. Nesta obra transparecem com bastante evidência a personalidade e a franqueza dos sentimentos de Lutero. A força lógica e persuasiva de seus argumentos revelam a mente treinada na disciplina da escolástica medieval. O estilo polêmico de Lutero era o da época em que viveu e traduz o vapor existente na atmosfera acadêmica de então. Na obra original (tanto mais do que no sumário publicado em português), há ironias, asperezas, ad hominems e alusões indiretas.

Não obstante, o leitor deve comparar o texto luterano muito mais com o bisturi de um resoluto cirurgião do que com a pena de um clínico em seu receituário. Na estima de Lutero, o tratado erasmiano era uma obra da carne. Contendo uma anamnese mal feita, partia de um princípio falso e oferecia um placebo para uma ferida mortal. Lutero repudia o Diatribe de Erasmo expondo a doutrina bíblica do pecado original. Sem um diagnóstico preciso acerca da enfermidade humana, não há como discernir de maneira apropriada o valor das boas-novas do evangelho da graça de Cristo. Em sua réplica, Lutero procede a um honesto e rigoroso exame das Escrituras Sagradas, evidentemente preterido por Erasmo.

Foi com a compreensão do puro evangelho que se abriu para Lutero a noção do cativeiro radical da vontade. Sem nenhuma dúvida, na doutrina da depravação do homem situa-se a pedra angular da Reforma. No coração da teologia de Lutero e da doutrina da justificação, está a sua compreensão da depravação original e da pecaminosidade do homem – que ele conheceu muito bem, mesmo como um monge asceta na Ordem agostiniana. O reformador está muito bem qualificado para tratar do assunto da impiedade e da depravação.

O que é a verdadeira liberdade? Neste caso, vê-se também que o discurso sobre a condição servil da vontade não visa a outra coisa, se não ao discurso correto sobre a liberdade. Para Lutero, a livre vontade é um termo divino, e não cabe a ninguém, a não ser unicamente à majestade divina. Conceder ao ser humano tal atributo significaria nada menos do que atribuir-lhe a própria divindade, usurpando a glória do Criador. Lutero, assim, compreende que a pergunta pela liberdade da vontade no fundo é a pergunta pelo poder da vontade. Por isso mesmo, a livre vontade é predicado de Deus. É poder essencialmente específico do próprio Deus.

Lutero considerava A Escravidão da Vontade a sua melhor e mais útil publicação. O valor deste tratado é inestimável realmente, e poucos livros há que sejam tão necessários no presente momento. O atual ensino de muitos que se denominam “protestantes” está em maior acordo com os dogmas papistas, ou com as idéias de Erasmo, do que com os princípios dos Reformadores; analisado criticamente, tal ensino está em maior harmonia com os Cânones e Decretos do Concílio de Trento do que com as Confissões de Fé Protestantes e Reformadas.

A Editora FIEL lançou uma nova edição de "Nascido Escravo". Trata-se de uma versão condensada e adaptada, facilitando o acesso ao clássico texto luterano. Oramos sinceramente que o Senhor abençoe o leitor e que este, abraçando com fé o Eleito de Deus, Jesus Cristo, batalhe por manter sua Causa e sua Verdade nestes dias em que muito tem sido perdido. Que o livro seja um meio de edificação e fortalecimento para todos quantos desejam ser instruídos pelos oráculos de Deus!



GLOSSÁRIO:
  1. Diatribe: Crítica acerba; escrito ou discurso violento e injurioso
  2. Ad hominem: Um Argumentum ad hominem (latim, argumento contra a pessoa) é uma falácia, ou erro de raciocínio, identificada quando alguém responde a algum argumento com uma crítica a quem fez o argumento, e não ao argumento em si.
  3. Anamnese: (do grego ana, trazer de novo e mnesis, memória) é uma entrevista realizada por um profissional da área da saúde com um paciente, que tem a intenção de ser um ponto inicial no diagnósticodoença. Em outras palavras, é uma entrevista que busca relembrar todos os fatos que se relacionam com a doença e à pessoa doente. de uma
  4. Placebo : (do latim placere, significando "agradarei") é como se denomina um fármaco ou procedimento inerte, e que apresenta efeitos terapêuticos devido aos efeitos fisiológicos da crença do paciente de que está a ser tratado.

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